
Dois repórteres do jornal The Washington Post, Daniel Wolfe e Alice Li, tiveram a oportunidade de testemunhar, em junho, na Fazenda Tishaniik, de propriedade da tribo Karuk, em Orleans, Califórnia, uma prática milenar, conduzida por seus líderes tribais e comunitários: a queima cultural, definida como o uso proposital do fogo por povos originários para diversos fins. Agora, mais precisamente no dia 14 de outubro, a matéria foi publicada naquele veículo.
Praticada tanto como estratégia de proteção ambiental, como cerimônia com a terra ou visando a produção tradicional de alimentos e artesanato, a queima cultural voltou a ser permitida em janeiro na Califórnia, a partir da promulgação de uma lei que autoriza tribos nativas americanas, reconhecidas como tais pelo governo federal, a realizarem queimas culturais, em um inequívoco reconhecimento de sua soberania e ligação histórica com a terra. O novo dispositivo legal permite que tribos ateiem fogo com supervisão federal mais branda e reconhece a prática como um modo de tornar aquele estado mais resiliente a incêndios florestais.
Remontava ao século 19 a legislação californiana que reprimia queimas. Em 1850, uma lei autorizava multar ou punir quem quer que queimasse terras. Uma política total de supressão de incêndios foi determinada pela lei Weeks, de 1911, que prescrevia o controle de incêndios florestais por agências estaduais e federais, visando evitar sua propagação. Membros de povos originários foram baleados por deflagrar incêndios.
Antes da colonização ocidental, segundo artigo publicado em 2024, o território aborígene Karuk, ao longo do Rio Klamath, tinha quase 7 mil ignições por ano, o que representa a média de 19 ignições diárias, em uma área 3,5 vezes mais extensa que a cidade de Nova Iorque. Estima-se que na época cada representante de povos originários provocava de dois a 12 incêndios anuais.
A reportagem especial detalha com riqueza de detalhes narrativos e visuais a prática ancestral e esclarece a distinção entre uma queima cultural e um fogo controlado. “Uma queima é diferente de um fogo controlado, que o Serviço Florestal dos EUA utiliza para proteção contra grandes incêndios florestais. Enquanto a agência trabalha para reduzir a forragem disponível para um possível incêndio, as queimas lideradas por povos originários visam proteger seu modo de vida”.
Estudo conduzido por Gavin Jones e citado na reportagem revela que, a prosseguirem as práticas de exclusão de incêndios convencionais e de matriz ocidental, na Serra Nevada, estima-se que há uma chance de 64% de perda total da floresta nos próximos 50 anos. Até o final do século a perda seria quase total. Já com o desbaste mecânico e as queimas culturais para restauração florestal, esta cifra cai para um dígito.
A matéria dá conta da existência de um Conselho de Gestão Cultural do Fogo (CFMC), que, atuando na Reserva Yurok vizinha e em suas terras ancestrais, e contando com 23 funcionários, realiza queimas controladas desde 2012. Nesta ocasião queimaram sete acres, com o apoio do Departamento de Silvicultura e Proteção contra Incêndios da Califórnia e o Conselho Tribal Yurok. Já no ano seguinte, queimaram 67 acres.
Outro dado curioso é que o artesanato local depende das queimas culturais para existir. É que a avelã-da-califórnia, um arbusto empregado na tecelagem de cestos pelas tribos Yurok, gera ramos retos, quando queimado.
É importante lembrar que os ocidentais já utilizam a “queima prescrita” como estratégia de manejo florestal com a finalidade de reduzir a carga de material combustível e prevenir incêndios que fogem ao controle. Nesta técnica, o fogo é empregado como instrumento de manejo. Já a queima cultural, praticada pelos povos originários, tem sua origem em práticas tradicionais e espirituais e visam manter relações culturais, espirituais e ecológicas com a paisagem, bem como promover a produção de alimentos, a biodiversidade e o equilíbrio territorial.
Como era de se esperar, a matéria revela preocupações da comunidade quanto à continuidade da prática sob o governo Trump, que tem pressionado pela supressão imediata dos incêndios, o que coloca em risco tal prática milenar.
E então? O que o mundo pode aprender com quem sempre viveu em equilíbrio com o fogo?
Com informações da matéria intitulada Painting with fire: How indigenous practices can help protect forests, publicada no The Washington Post, em 7 de outubro de 2025.