O cenário de emergência marinha foi moldado por uma longa trajetória de construção institucional. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), adotada há mais de quatro décadas, foi o marco jurídico que consagrou, pela primeira vez, o oceano como patrimônio comum da humanidade, definindo regras para a governança internacional do espaço marítimo. Mais recentemente, o Acordo de Paris (2015), simultâneo à Agenda 2030, embora centrado nas emissões atmosféricas, reconhece a função essencial do oceano na regulação climática global, incorporando a acidificação oceânica como um dos efeitos críticos da crise climática. A poluição plástica, por sua vez, se consolida como um elo entre as agendas do clima, da biodiversidade e da saúde: a decomposição do plástico libera gases de efeito estufa, compromete habitats e carrega riscos diretos para populações humanas — sobretudo aquelas costeiras e em situação de vulnerabilidade socioambiental.
Em um cenário de degradação crescente dos ecossistemas marinhos, a Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos (UNOC 2025) reuniu, entre 9 e 13 de junho, mais de 170 países, incluindo chefes de Estado, ministros, cientistas, representantes de povos tradicionais, setor privado e agências da ONU, na cidade francesa de Nice, localizada às margens do mar Mediterrâneo. A escolha de Nice teve forte simbolismo ambiental e político: a cidade está diretamente exposta ao impacto das mudanças climáticas e da poluição marinha, sendo também um centro estratégico da diplomacia climática europeia.
Representantes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) participaram da Conferência. A Fiocruz integrou a delegação brasileira oficial, a convite do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty), com uma representação composta pelo coordenador da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030), Paulo Gadelha, e, como organização credenciada, pela assessora e pesquisadora Carla Campos.
Organizada em conjunto pela França e pela Costa Rica, a Conferência teve como objetivo central acelerar compromissos concretos e mobilizar todos os atores globais em defesa da implementação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 (ODS 14) da Agenda 2030: “Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.
Sob o lema “Acelerar a ação e mobilizar todos os atores para conservar e usar o oceano de forma sustentável”, a UNOC 2025 assumiu um caráter particularmente urgente diante da intensificação da crise climática e da emergência ecológica global. A Conferência culminou com a adoção do Plano de Ação para o Oceano de Nice, documento conciso e orientado à ação, acordado intergovernamentalmente e acompanhado de uma série de compromissos voluntários por parte dos Estados-membros e demais atores envolvidos.

Da esquerda para a direita, Carla Campos, pesquisadora da Fiocruz e Assessora da EFA 2030, e Paulo Gadelha, Coordenador da EFA 2030 – em frente a um dos pavilhões durante o evento.
Na abertura da Conferência, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, destacou de forma enfática a urgência da ação:
“Temos um plano: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Temos um caminho: a Agenda de Ação de Nice. E temos uma obrigação: fazer a paz com a natureza.”
(“We have a plan: the Sustainable Development Goals. We have a pathway: the Nice Action Agenda. And we have an obligation: to make peace with nature.”)
Link para o discurso completo na ONU
Brasil: potência oceânica e compromisso internacional
Com aproximadamente 5,7 milhões de km² de zona econômica exclusiva costeira, o Brasil detém uma das maiores extensões oceânicas do mundo, por isso chamada de “Amazônia Azul” — uma vasta área estratégica para a biodiversidade, soberania nacional, economia e saúde ambiental.
Cerca de 60% de sua população vive em áreas litorâneas, o que confere ao país um papel central nas discussões globais sobre a governança do oceano. O país abriga uma biodiversidade marinha incomparável, culturas costeiras tradicionais, uma ampla atividade pesqueira e zonas economicamente promissoras para o desenvolvimento de energias renováveis offshore, como a eólica. Também enfrenta desafios sérios, como erosão costeira, sobrepesca, lixo marinho e poluição urbana.
Durante a UNOC 2025, a delegação brasileira — liderada pelo Itamaraty — esteve presente em diversos espaços multilaterais, reiterando o compromisso do país com a sustentabilidade marinha e com a implementação efetiva do ODS 14. A presença da Fiocruz neste contexto representou o reconhecimento da importância da ciência brasileira para os debates conjuntos sobre saúde, clima e desenvolvimento sustentável.
No evento, o Brasil reiterou seu compromisso com a conservação marinha, anunciando, entre outras ações, a intenção de ratificar, ainda este ano, o Tratado da Biodiversidade de Áreas Além da Jurisdição Nacional (Tratado de Alto-Mar), aprovado pelas Nações Unidas em 2023, que visa a garantir a gestão compartilhada, equitativa e transparente da biodiversidade marinha além das fronteiras territoriais.
Ao mesmo tempo, a postura brasileira diante de alguns pontos sensíveis do debate chamou atenção. Durante a conferência, 95 países assinaram o chamado “Apelo de Nice”, uma declaração voluntária comprometida com a aceleração do tratado internacional para conter a poluição plástica nos oceanos. O Brasil, oitavo maior poluidor de resíduos plásticos marinhos do mundo, não aderiu ao documento, seguindo a posição de outros países produtores de petróleo do grupo dos BRICS, como China, Rússia e Índia. A decisão gerou críticas de setores da sociedade civil e especialistas em saúde ambiental, que esperavam um gesto mais firme de alinhamento com as metas ambientais globais.
A justificativa apresentada para a não adesão foi a necessidade de maior consideração sobre os impactos econômicos da regulamentação do plástico sobre países em desenvolvimento e produtores de petróleo — matéria-prima essencial para a fabricação de resinas plásticas. Dos maiores produtores de petróleo do mundo, apenas Noruega, Canadá e México assinaram o documento em Nice. O Brasil ocupa posição entre os dez maiores produtores globais de petróleo, o que influenciou sua decisão política de não se comprometer formalmente neste momento.
A contradição entre o discurso e a prática ficou evidente ao se comparar com declarações anteriores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem buscado posicionar o país como líder global em temas ambientais. Em ocasiões como o anúncio da COP 30 em Belém (2025), Lula defendeu que “o Brasil está de volta para liderar pelo exemplo” na luta contra as mudanças climáticas. No entanto, a hesitação em apoiar iniciativas vinculadas à redução da produção e consumo de plásticos levanta questionamentos sobre os limites desse protagonismo climático.
A questão plástica não é apenas ambiental — é também sanitária e de justiça social. Estudos recentes revelam que partículas de microplásticos foram encontradas em placentas humanas, pulmões, sangue e até leite materno, com potenciais impactos ainda pouco compreendidos sobre os sistemas imune, endócrino e reprodutivo. Pesquisas indicam possíveis correlações com inflamações crônicas, distúrbios hormonais e aumento da incidência de doenças respiratórias e cardiovasculares. Em organismos marinhos, os efeitos são igualmente graves, comprometendo cadeias alimentares e acumulando toxinas, que chegam ao consumo humano, especialmente em populações costeiras de baixa renda que dependem do pescado como principal fonte proteica.

Foto: Ricardo Stuckert / PR
A negociação final do tratado internacional sobre a poluição plástica está prevista para agosto de 2025, em Genebra, na Suíça, e será decisiva para o estabelecimento de normas vinculantes para produção, consumo e gestão de resíduos plásticos em escala global. Até lá, o Brasil terá a oportunidade de revisar sua posição, sob pressão de ambientalistas, cientistas e da própria sociedade civil internacional, que demandam mais coerência entre a retórica da liderança ambiental e os compromissos assumidos em fóruns multilaterais como a UNOC.
Uma Só Saúde Azul: a contribuição estratégica da Fiocruz
A participação da Fiocruz na UNOC 2025 se insere na ampliação de sua atuação estratégica no campo do que está sendo denominado como Uma Só Saúde Azul — uma vertente da abordagem “Uma Só Saúde” ou “Saúde Única”, que reconhece a interdependência entre as saúdes humana, animal, ambiental e ecossistêmica, e busca ressaltar, de forma inédita, o papel fundamental dos ecossistemas marinhos para a saúde de todos e para a vida na Terra.
Paulo Gadelha reforça que “A Saúde Única Azul vem sendo consolidada na instituição como parte das ações da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030) e da Estratégia Fiocruz para Clima e Saúde (ECS/Fiocruz)”. Trata-se de uma abordagem transdisciplinar que integra saberes da biologia marinha, saúde pública, ecologia, sociologia e economia, e “busca contribuir para políticas públicas que considerem os impactos da degradação oceânica na saúde das populações, especialmente as costeiras e ribeirinhas e as mais vulneráveis”, completa.
As ações da Fiocruz nesse campo se iniciaram pela interlocução com potenciais parceiros do campo da ciência oceânica. Esta estratégia foi adotada por não se objetivar propor uma mudança no campo de atuação da instituição, mas sim aproveitar toda a sua capacidade científica, tecnológica, de produção e inovação em saúde para uma profícua aproximação entre esses campos, de forma a integrar profissionais, disciplinas e setores. Dessa forma, espera-se atingir resultados mais efetivos e sustentáveis para a sociedade, com melhores condições de saúde para as pessoas, animais e o ambiente compartilhado.
Em breve, o Programa de Pesquisa Translacional em Uma Só Saúde, iniciará o processo de estruturação de sua rede sobre Oceano, águas costeiras e continentais, dentro da qual o tema será aprofundado, em parceria com a EFA 2030. Nesse ambiente, será possível agregar profissionais para, de forma coletiva, ser promovida uma reflexão sobre ações conjuntas e estratégicas que possam ser realizadas por trabalhadores, trabalhadoras e estudantes da Fiocruz, em parceria com colegas de outras instituições dentro do nexo clima-saúde-oceano.
Carla Campos ressalta que “a estratégia de uma só saúde vem reforçar o conceito ampliado de saúde, fundamentada em uma visão ampla e integradora. Nesse contexto, as vulnerabilidades socioambientais são consideradas de forma transversal e uma forte razão para aproximarmos os campos da saúde e da ciência oceânica. São justamente as populações mais vulneráveis – perto ou longe da costa – que já sentem e sentirão cada vez mais os efeitos da degradação ambiental oceânica e suas consequências, como a crise climática. Durante a UNOC3, foi muito trabalhada a mensagem de que o oceano sofre com a forma como vivemos e lidamos com o ambiente e que nós sofremos com a degradação do oceano, como uma via de mão dupla que também simboliza bem o que é Uma Só Saúde: estamos todos interligados e precisamos cuidar do planeta, dos animais, ecossistemas e, especialmente, dos nossos semelhantes. Só estaremos bem se todos estiverem bem.”
A Fiocruz atuou como representante da comunidade científica nacional, acompanhando os debates e articulações promovidas pelo Brasil. Sua presença reforça a necessidade de considerar a saúde como eixo transversal nas políticas oceânicas globais.
Durante o evento, a Fiocruz também reforçou seu papel no debate global, ao participar do lançamento da Ocean Quest, uma iniciativa multissetorial voltada à promoção de expedições científicas em águas profundas e à aceleração de uma economia regenerativa baseada na ciência do oceano profundo. A instituição foi, ainda, convidada a contribuir com a sessão de Biotecnologia, do capítulo sobre Ciência e Tecnologia da iniciativa e está envolvida na elaboração de conteúdos técnicos e estratégicos para o Deep Ocean Fund — um fundo de investimento em estágio de concepção que visa estruturar mecanismos financeiros para pesquisa, inovação e governança sustentável dos ecossistemas marinhos de grandes profundidades.
A Fiocruz integra o grupo de instituições que vêm apoiando tecnicamente a Deep Blue Initiative, articuladora do Deep Ocean Forum Report — documento lançado em junho de 2025 que propõe modelos de negócios e instrumentos financeiros para o uso regenerativo do oceano profundo.
A contribuição da Fiocruz também está conectada à preparação da expedição científica Trindade–Noronha, prevista para o primeiro semestre de 2026, sob coordenação do INPO (Instituto Nacional de Pesquisa Oceânica). Essa missão brasileira em águas profundas visa mapear ecossistemas marinhos pouco estudados, ampliar a coleta de dados genéticos e ambientais, e testar tecnologias emergentes para observação e coleta. A Fiocruz participa da expedição como parceira estratégica no eixo de saúde e biodiversidade, contribuindo para análises integradas sobre o impacto das alterações climáticas e poluentes nos sistemas costeiros e na saúde das comunidades humanas e não-humanas.
Essas ações reforçam o compromisso institucional com uma ciência orientada ao bem comum e com a transição para uma economia oceânica inclusiva, ética e sustentável. “O tema de Uma Só Saúde Azul emerge, assim, como uma das principais contribuições da Fiocruz à governança oceânica global, dialogando com organismos multilaterais e com os princípios de equidade e cooperação científica internacional”, destaca Paulo Gadelha.
A inserção da ciência brasileira em fóruns como a UNOC é parte de um esforço diplomático mais amplo para reposicionar o país como ator de peso na agenda ambiental e climática global. A construção de alianças internacionais, em especial com países da América Latina, África e Europa, visa ampliar a cooperação técnica e científica em temas como acidificação oceânica, doenças emergentes ligadas à saúde marinha e estratégias de adaptação climática com base na natureza.
Próximos passos: do diagnóstico à ação
A UNOC 2025 marca uma virada decisiva entre a inação e a regeneração dos ecossistemas marinhos. O Plano de Ação de Nice, fruto dos diálogos realizados ao longo da semana passada, estabeleceu diretrizes claras para compromissos nacionais e multilaterais, com base na ciência e no princípio de responsabilidades comuns, porém diferenciadas, como.
- O compromisso dos a elevar para pelo menos 30% a área oceânica protegida até 2030, aumentando tanto o tamanho quanto a eficácia da administração de unidades de conservação. A parceria multissetorial permitirá o uso de satélites, drones, sensores e outras inovações para apoiar o manejo de habitats críticos.
- Com o apoio de 96 países que assinaram a Declaração de Nice, propõe-se a redução gradual de plásticos de uso único, o incentivo à reciclagem e à economia circular, e o desenvolvimento de métodos inovadores para a remoção de resíduos já presentes no oceano.
- O Acordo sobre a Biodiversidade Além da Jurisdição Nacional (BBNJ) — também chamado de Tratado do Alto Mar — foi destacado como um marco jurídico compartilhado para a governança oceânica. Até o momento, 50 países já depositaram seus instrumentos de ratificação, enquanto outros 18 estão em processo, sinalizando que o tratado deve entrar em vigor até janeiro de 2026.
- A voz de comunidades e representantes eleitos também teve um espaço relevante nas negociações. Por meio do primeiro “Parlamento do Mar”, que reuniu mais de 100 parlamentares, formou-se a ICOP (Coalizão Interparlamentar para a Proteção do Oceano), comprometida em elevar ao debate nacional medidas legislativas específicas para a preservação e uso sustentável do oceano.
- Ainda na mesma linha, foram comprometidos € 8,7 bilhões — tanto de fontes filantrópicas quanto de investidores privados e bancos públicos — para apoiar uma economia azul sustentável e regenerativa ao longo dos próximos cinco anos. Durante o evento, também foi apresentado o primeiro Pacto Europeu para o Oceano, que conta com um aporte de € 1 bilhão da União Europeia para dar suporte às ações compartilhadas.
A Fiocruz, por sua vez, seguirá articulando sua atuação em saúde, clima e desenvolvimento sustentável com a perspectiva ampliada de Uma Só Saúde Azul, contribuindo com dados, evidências e propostas em diálogo com parceiros nacionais e internacionais. Sua participação na UNOC reforça o compromisso institucional com a defesa da vida em todas as suas dimensões — humanas, sociais, ecossistêmicas e ambientais — e com a justiça socioambiental como princípio estruturante do desenvolvimento sustentável.
A UNOC 2025, portanto, deixa clara em sua mensagem ao mundo a importância da participação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e pequenos estados insulares na formulação de políticas para o oceano. Essas populações são as primeiras a sofrer os impactos das mudanças climáticas e da degradação marinha e são, também, detentoras de saberes milenares sobre gestão sustentável dos recursos marinhos. A diversidade de representações na conferência e o engajamento da sociedade civil reforçaram o caráter político do evento, que funcionou não apenas como um fórum técnico, mas como palco de disputas geopolíticas sobre os rumos da governança marinha global.