A Semana de Saúde e Bem-Estar da Expo Osaka 2025, que conta com a curadoria científica da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030), reuniu neste sábado (29/6, horário de Brasília) especialistas de diversas regiões do globo em painel intitulado Saúde Única na perspectiva da sustentabilidade, que contou com moderação de Paulo Gadelha, coordenador da EFA 2030. Eles defenderam a necessidade de consolidar a abordagem “Saúde Única” (One Health) como eixo primordial para a saúde planetária e resposta fundamental à aceleração de pandemias, à degradação dos ecossistemas e às mudanças climáticas.
“Saúde Única”, segundo definição criada em 2021 pelo Painel de Especialistas de Alto Nível em One Health (OHHLEP) “é uma abordagem integrada e unificadora que visa equilibrar e otimizar de forma sustentável a saúde das pessoas, dos animais e dos ecossistemas”
Foto: Marcello Martins, Apex-Brasil
Zoonoses, dados e vigilância integrada
Xiao-Nong Zhou, cientista-chefe do Instituto Nacional de Doenças Parasitárias (INPD), parte do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (China CDC), destacou que, ainda que o conceito “Saúde Única” esteja bem estabelecido em organismos internacionais, é limitada sua incorporação nas políticas públicas. De acordo com ele, a China tem avançado com experiências concretas, como a erradicação da filariose linfática, em 2007, e da malária, em 2021. Para 2025, a meta é erradicar a esquistossomose.
Como principais desafios de seu país, Zhou citou a necessidade de sistemas de vigilância que articulem seres humanos e animais, e que integrem dados ambientais em tempo real. Plataformas de big data e inteligência artificial, com sensores instalados em colares inteligentes para desparasitação de cães e modelos preditivos capazes de antecipar surtos zoonóticos compõem a estratégia chinesa.
Um índice chinês que avalia 160 países em cinco dimensões, incluindo vigilância, resistência antimicrobiana, políticas de integração e cooperação científica foi apresentado por Zhou: o Índice Global de Saúde Única. De acordo com ele, os maiores déficits globais estão na vigilância de microrganismos resistentes e na articulação entre setores.
O índice foi idealizado como um instrumento para orientar investimentos, fomentar cooperação internacional e identificar gargalos na aplicação da abordagem Saúde Única. É de dezembro de 2024 um memorando de entendimento entre a Federação Mundial de Associações de Saúde Pública, a Associação Chinesa de Medicina Preventiva e a Universidade de Shanghai que representa passo concreto nessa direção.
Segundo Zhou, o Banco Mundial calcula que a aplicação sistemática da abordagem Saúde Única pode gerar um benefício líquido anual entre US$ 4 bilhões (em anos sem pandemia) e US$ 35 bilhões (em caso de pandemia grave a cada 100 anos). A economia fica por conta da redução da duplicação de estruturas, otimização de recursos e resposta precoce a emergências sanitárias.
Enchentes e leptospirose: o caso do Rio Grande do Sul
Deise Galan, professora adjunta do Departamento de Saúde Global da Georgetown University, apresentou um estudo de caso sobre a leptospirose no estado do Rio Grande do Sul, fortemente afetado por enchentes em maio de 2024. Naquela ocasião, o estado viu os casos da doença aumentarem em mais de dez vezes em comparação com o ano anterior. A análise, baseada em regressões espaciais e ambientais, constatou maior incidência da leptospirose em presença de lavouras de arroz e tabaco.
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Segundo Galan, a leptospirose ilustra bem a importância do paradigma da Saúde Única no estudo das zoonoses. Além disso, seus estudos verificaram que a incidência de leptospirose em áreas rurais foi oito vezes maior do que em zonas urbanas.
Ela recomenda que desastres como o ocorrido no Rio Grande do Sul não sejam tratados como eventos excepcionais, pontos fora da curva, mas como sintomas de desequilíbrios sistêmicos e falhas na governança territorial e sanitária.
Deise apontou possíveis razões para a dificuldade em se ver uma mudança de paradigma nas políticas públicas visando uma maior incorporação da abordagem “Saúde Única”. São elas:
- Integração insuficiente de dados entre os sistemas de saúde humana, animal e ambiental
- Vigilância limitada na vida selvagem e nos ecossistemas, especialmente em regiões de alta biodiversidade e alto risco
- Lacunas na modelagem de mudanças no uso da terra e seu impacto nos resultados de saúde
- Falta de sistemas de detecção precoce para pontos críticos de transbordamento zoonótico e resistência antimicrobiana. [Nota da redação: Risco de transbordamento zoonótico é a probabilidade de um agente infeccioso cruzar a barreira de espécie, sair de seu reservatório animal (ou ambiental) e estabelecer infecção sustentada em humanos (ou em animais domésticos), criando potencial para surtos ou pandemias].
- Falta de uma abordagem padronizada para avaliar os riscos de transbordamento zoonótico entre populações animais, sistemas alimentares e interfaces humanas
- Sub-representação do conhecimento indígena e da experiência da comunidade local em políticas e ciências
- Mecanismos de governança fragmentados e falta de padronização na implementação da “Saúde Única”.
Companheiros invisíveis e pegada ecológica: o papel dos animais de estimação
Em uma abordagem incomum, o veterinário Devon Dublin, líder do Comitê de Saúde Única da Associação Mundial de Veterinários de Pequenos Animais (WSAVA) propôs a integração da posse responsável de animais de companhia à agenda ambiental. Segundo ele, práticas associadas a pets — como uso de produtos, descarte de dejetos, e até emissão de gases no ciclo alimentar — precisam ser reavaliadas sob a ótica da Saúde Única.
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Dublin defendeu políticas de adoção em detrimento da venda de animais de estimação e o uso de produtos sustentáveis. Ele também destacou o papel dos tutores na educação ambiental e na promoção de condutas preventivas de saúde pública.
Como principais conclusões de sua exposição, Dublin ressaltou que “nosso amor por animais de companhia deve nos tornar fortes defensores da gestão ambiental adequada e de questões como as mudanças climáticas e o aquecimento global” e que “tutores de animais de estimação, clínicos e a indústria são coletivamente responsáveis por colocar a Saúde Única no centro da propriedade de animais de companhia”.
Brasil: vigilância participativa e biodiversidade como ativo estratégico
A pesquisadora Marcia Chame, da Fiocruz, apresentou o sistema SISS-Geo, uma ferramenta que reúne mais de 49 mil registros e integra alertas em tempo real para gestores em todos os níveis, convertendo-se assim em ferramenta inovadora de vigilância participativa em saúde silvestre no Brasil. Tendo como estopim a febre amarela, a experiência atualmente cobre outros arbovírus emergentes, como Oropouche e vírus do Oeste do Nilo.
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O SISS-Geo utiliza algoritmos para identificar surtos com base em similaridade de registros, georreferenciamento de dados e modelagem preditiva. Chame destacou que, na ausência de dados oficiais sobre fauna e flora em regiões críticas, a participação de cidadãos e comunidades é essencial para preencher lacunas.
Os palestrantes convergiram em torno da ideia de que a abordagem Saúde Única precisa sair do papel e se transformar em arcabouço institucional, que englobe a incorporação de saberes tradicionais, o fortalecimento das redes de vigilância comunitária e o investimento em políticas integradas.
Como bem resumiu Deise Galan, “Saúde Única não é só um modelo técnico – é um compromisso ético para com as gerações futuras”.
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Os eventos da Semana de Saúde e Bem-estar da Expo Osaka 2025 tiveram curadoria científica da Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030, na pessoa de Paulo Gadelha, seu coordenador, a convite do Ministério das Relações Exteriores e da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).