Pouco após a reunião do High-level Political Forum (HLPF) na cidade de Nova York, em julho, o seminário “Agenda 2030 e ODS – Onde estamos, para onde vamos?”, série dos Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde promovido pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS/Fiocruz), teve um consenso dos participantes quanto a comparar os avanços no desenvolvimento sustentável de 2015 com a atual fase crítica de seguidos retrocessos, sobretudo nos campos político, social e econômico, com grandes reflexos negativos na Agenda 2030.
No HLPF, todos os países do mundo, anualmente, se reúnem para fazer um balanço da Agenda 2030. Esse fórum está ligado ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), um dos grandes segmentos que compõe as Nações Unidas no qual, em 2015, ano de grandes mudanças em prol do desenvolvimento, foi lançado o plano global adotado pela ONU, com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, visando um futuro mais sustentável e justo para todos até 2030, conhecido como Agenda 2030.
Negação dos EUA à Agenda 2030
Na abertura do evento, Paulo Buss, diretor do CRIS/Fiocruz e ex-presidente da Fundação, criticou a atual política protecionista dos EUA, que tem negativos reflexos nas metas dos ODS, da qual se desligou recentemente. Para ele, trata-se de um rechaço brutal da maior potência militar e política do planeta, os EUA, na reunião de março da Assembleia Geral das Nações Unidas.
“A retirada dos EUA como uma ostra fechada em seu unilateralismo, com imposições que transformam a ordem econômica, agora tentando alterar a ordem política (…), e ignorando solenemente que o país participe da Agenda 2030”, lamentou Buss.
Anos de esperança de uma nova realidade social
Comparações sobre avanços e retrocessos no desenvolvimento sustentável tem reforço na apresentação de Santiago Alcázar, embaixador e pesquisador honorário da Fiocruz. Ao passar a ideia de uma ‘fotografia’ baseada no universo de pessoas, das instituições, das agências terceirizadas para refletir qual era, em 2015, o estado do mundo, remete às séries fotográficas de Sebastião Salgado sobre a realidade social. Isso para saber se nós havíamos avançado ou não com respeito à ‘fotografia’ original que foi tirada em 1945, quando as Nações Unidas nasceram das cinzas da Segunda Guerra. “Avançamos no sentido de fazer um mundo melhor, melhor para todos, e aqui na Agenda 2030 esse mundo melhor é sem deixar ninguém pra trás”, afirma.
A Carta das Nações Unidas, criada após o conflito, é citada por Alcázar como importante marco para o desenvolvimento humano, sobretudo em seu Artigo 55, no qual estão as principais causas dos conflitos: pobreza, desigualdade, exclusões. Mesmo assim, segundo ele, optou-se por visão local estreita e mesquinha. Cita como exemplos disso dois planos de reconstrução, o Plano Marshall, na Europa, e o do Japão, ambos pelo temor da ameaça comunista. Ele lembra que o propósito das Nações Unidas de paz sempre encontrou dificuldades, inclusive, dois meses após sua assinatura, quando explodiu a bomba atômica em território japonês.
A Cúpula do Milênio, em 2000, foi, segundo o pesquisador a primeira a dar ao tema do desenvolvimento a sua verdadeira dimensão. Mas, recorda que o processo carecia de um empuxo político mais claro e decidido. A oportunidade disso, recorda, veio em 2015, annus mirabilis, que teve, em maio, a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, com a resolução A/Res/70/1 Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável e em dezembro na COP-21, o Acordo de Paris. Toda essa esperança começou a mudar a partir da pandemia da Covid-19 e, posteriormente, com a Guerra da Ucrânia e de Gaza. “Pouco a pouco, aquele espírito solidário foi se desfazendo em fiapos”, simboliza.
A Agenda 2030 talvez seja, na opinião de Alcázar, o documento mais ambicioso concebido para alcançar o desenvolvimento sustentável em escala global. Tem toda essa interação com todo o universo das Nações Unidas que envolve estados membros, autoridades globais, representantes da sociedade civil, povos originários, cientistas, academia, setor privado. Porém, salienta que há as múltiplas crises, o aumento das iniquidades, o unilateralismo, a cultura da indiferença, a falta de solidariedade e do espírito de cooperação, a crise de governança global e dificuldades financeiras, sobretudo na África. “Acho que podemos reordenar todas as relações para realmente completarmos a missão que havia sido iniciada em 1945, completou ao final de sua palestra.

Revisão do conceito de desenvolvimento
Em tempos da possibilidade de revisão dos ODS por meio do Relatório Luz da Sociedade Civil, tem sido uma tônica a exposição de ideias na tentativa de melhorá-la. Rômulo Paes, pesquisador sênior da Fiocruz, presidente da Abrasco e assessor do Estratégia Fiocruz para a Agenda 2030 (EFA 2030), percebe no Brasil quatro pontos fundamentais para se pensar a situação atual da Agenda 2030 na sua implementação. Primeiro, ressalta a crise da governança global como um mau momento para se pensar num projeto compartilhado de desenvolvimento onde há uma situação de crise em função das desconfianças quanto a um dos autores fundamentais da governança global, que são os EUA, e de uma própria coalizão internacional que desafia essa arquitetura política que se construiu para o planeta após a Segunda Guerra Mundial.
No caso brasileiro, situa, há três fatores importantes: um é o fato de nós termos um avanço na institucionalidade da implementação da Agenda no Brasil, que é a Comissão Nacional dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a CNODS. O outro, lembra, é que o Brasil pretende apresentar um novo relatório no ano que vem – Relatório Nacional Voluntário (RNV). “Ao fazer isso, a comissão também ganha vitalidade”, vislumbra.
O terceiro ponto, situa Paes, é a questão da COP 30 no Brasil, em Belém, este ano, não só pelo aspecto de sobreposição de temas que envolvem a Agenda 2030 com os temas da conferência do clima, mas também porque parte do temário que está sendo debatido lá e que diz respeito à nova agenda de desenvolvimento. Muitas das escolhas que os países farão ou estão fazendo constarão nessa própria discussão da agenda de desenvolvimento, que é nova.
Por fim, Paes menciona a necessidade de se definir o conceito de desenvolvimento. Segundo ele, passou a ter uma forte contestação porque estava muito ligado à ideia de desenvolvimento econômico, e um desenvolvimento econômico que é dado tanto do próprio processo de desenvolvimento no período colonial das economias e substituídos pelo capitalismo numa forma específica de conquista de outros territórios para ampliar sua capacidade de produção e de comercialização de bens. Então, continua, essa questão do imperialismo, primeiro o colonialismo, depois o imperialismo, e todos os reflexos que tiveram sobre o planeta, sobre os territórios.
‘Guerra’ contra direitos e evidências
Além de discutir a visão da sociedade civil, Alessandra Nilo, cofundadora de Gestos-HIV e Communication and Gender e diretora de Relações Externas para Américas e Caribe, da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), acrescenta uma perspectiva desse atual momento de reforma do sistema das Nações Unidas em curso, e traz a perspectiva de gênero nos debates relacionados aos meios de implementação de Agenda 2030. Ela discorreu sobre a perspectiva da sociedade civil organizada a partir daquelas instituições que são focadas na promoção dos direitos, principalmente dos direitos sociais, econômicos e ambientais. “Há um consenso de que estamos num momento de tiping point na história, vivendo essas diferentes crises globais que são interconectadas, que para mim elas têm realmente um foco muito grande, um agravamento muito grande quando eu vejo aliada às crises globais”, disse.
Nós vivenciamos também, prossegue, uma grande crise de liderança, que na verdade é uma grande crise política também que tem erodido esse sistema. De acordo com ela, a gente vive hoje o resultado de uma ordem política, econômica estruturada realmente em lógicas que são colonialistas, patriarcais e neoliberais, na qual todos os dados mostram que esse sistema está falhando. Segundo ela, após o ápice com a aprovação da Agenda 2030, a aprovação do marco de Sendai, a aprovação do Acordo de Paris, a aprovação da terceira Conferência de Desenvolvimento para o Financiamento, a agenda de ação de Adis Abeba, se fortaleceu no mundo a ‘guerra’ contra direitos e contra as evidências”.
A desvalorização estratégica deliberada para o trabalho de desenvolvimento humano tem, segundo ela, erodido muito a capacidade de responder de forma eficaz e de promover a Agenda 2030. Ela salienta que todos os dias se lembra do conceito de não deixar ninguém para trás, mas que não sabe o que dizer sobre o descaminho civilizatório, como o emblemático caso da Palestina, falência da comunidade internacional como nós a conhecemos.
“Nós precisamos, ao mesmo tempo que estimulamos um processo mais criativo de diálogo e de relação entre os países, também ter muito cuidado para não deixarmos erodir o sistema que existe das Nações Unidas. Todas a nossas falas aqui foram unânimes em ressaltar a importância desses compromissos multilaterais que foram assumidos”, afirma.
Financeiramente, Nilo ressalta a Quarta Conferência de Financiamento para o Desenvolvimento Sustentável, que aprovou o compromisso de Sevilla, onde o grande mantra foi somente alcançar um consenso de uma estrutura global renovada para o financiamento do desenvolvimento sustentável. Então, recorda, a sociedade civil levou várias recomendações para Sevilla, uma delas foi a reforma da arquitetura financeira internacional, muito em parceria com o governo do Brasil, rejeitando medidas de austeridade, fazendo com que essas instituições tenham um alinhamento com a Agenda 2030 e ajudando a acabar com o abuso fiscal corporativo.
Apoio total do Governo Federal à Agenda 2030
Thiago Galvão, assessor na Secretaria Geral da Presidência da República (SG-PR), da coordenação executiva da Comissão Nacional do Desenvolvimento Sustentável (CNODS) e professor substituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UNB), lembrou que está em aberto a Consulta Pública de revisão de métodos dos ODS em vigência de 11 a 31 de agosto deste ano. Saiba mais aqui.
Colocando alguns dos pontos e reflexões que tem de alguma forma movido o CNODS dentro dessa agenda internacional, ele apresentou a perspectiva governamental, tendo como foco a participação do CNODS em Nova York. Mencionou o cenário de crises que estamos evidenciando, segundo ele, uma crise humanitária, uma crise climática, no caso do Brasil e de outros países, uma ameaça à democracia. Tudo isso, ressalta, se junta dentro de um grande caldeirão de efervescências que coloca pressão sobre o campo político e exige, ao mesmo tempo, um desenho mais estratégico de atuação”, observa.
Ele concorda que a Agenda 2030 corre risco nesses últimos anos, se por um lado não cumprir aquilo que está sendo estabelecido, de ser desmontada pelas forças conservadoras, que a gente está tentando enfrentar com as ferramentas, com as pessoas que nós temos na linha de frente tanto no campo político, como no campo da sociedade.
“Esse concordar traz para a gente uma certa tomada de consciência da urgência de reagirmos, propondo efetivamente ações para que a gente possa enfrentar esse desafio”, disse.
Dentro dessa leitura, Galvão observa que o campo diplomático e o político estão estabelecendo um eixo de comunicação e colaboração internacional, sejam da Amazônia, da América Latina e Caribe, do G-77, do G-20 e do Brics. “Há uma clara movimentação política nesses polos em torno da agenda de desenvolvimento, desde 2023”, frisa.
“Na Presidência da República, há um lugar específico para tentar absorver as demandas da sociedade civil organizada, da sociedade em geral, que chegam para o governo a fim de que essas políticas públicas possam ser mais bem endereçadas e desenhadas a partir das demandas da sociedade. É esse espaço ao qual nós estamos ocupando hoje na Secretaria Executiva na Comissão Nacional das ODS, que garante participação social em algumas das principais discussões e temáticas. Tem o “conselhão”, Conselho da Federação, você tem a retomada de conselhos, comitês e comissões. Em relação à Nova York, é um ponto dentro de um eixo político democrático, além da participação dos fóruns relacionados à Agenda 2030”, informa.
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